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Fim do lockdown na França: a vida voltou ao normal?

Crédito: Fran Boloni/Unsplash

No dia 11 de maio, foi a primeira vez, depois de dez semanas, que eu saí de casa para deixar o lixo do lado de fora, a cerca de 10 metros de distância do meu apartamento, sem precisar preencher uma autorização online do governo. Após um confinamento obrigatório desde o dia 17 de março, a França liberou a população para sair de casa.

‘’Nós pedimos para que vocês se confinassem e fugissem do coronavírus. Agora vamos pedir para que saiam de casa e aprendam a conviver com ele.’’ Foi com essa frase que o primeiro-ministro da França, Edouard Philippe, nomeado pelo presidente Emmanuel Macron, iniciou seu pronunciamento à população para anunciar as medidas que seriam tomadas com o fim da quarentena. Após quase duas horas de conferência para explicar o passo a passo do “deconfinement” (uma expressão muito utilizada na França que significa, em português, algo como “desconfinamento”), o político concluiu seu discurso afirmando que a vida não voltaria ao normal tão cedo.

Durante o período de lockdown, a população francesa se acostumou a preencher formulários contendo informações como horário de saída, endereço e número de identidade. Só era permitido sair a um raio de um quilômetro de distância da residência e com duração máxima de uma hora. Não era autorizado utilizar esse momento para encontrar-se com conhecidos, por exemplo. O contato físico só deveria ocorrer entre pessoas que compartilhavam o mesmo teto. As saídas poderiam acontecer de forma pontual, para comprar alimentos ou se exercitar brevemente ao ar livre – e sozinho.

Quem não respeitava as regras poderia pagar uma multa inicial de 135 euros, podendo até ser preso. Algumas pessoas tentaram driblar as recomendações, organizando festas em casa com os amigos – e, na maioria das vezes, denunciados pelos vizinhos. Também tiveram casos mais sérios,como o de um padre que realizou uma missa de Páscoa secreta em plena madrugada para mais de 50 pessoas. Entretanto, de um modo geral, a população francesa respeitou a quarentena e o resultado foi comprovado com as estatísticas divulgadas diariamente pelo Ministério da Saúde do país: as novas infecções diminuíram e os leitos de UTI ficaram cada vez mais vazios.

Regiões verdes e vermelhas

Para realizar o “desconfinamento”, dois infográficos com o mapa da França passaram a ser exibidos todos os dias durante a coletiva de imprensa do governo. Um deles mostra a circulação do vírus em todas as sub-regiões do país. O outro exibe a ocupação dos leitos de UTI em todo o território. As áreas pintadas de verde, onde a situação é considerada “sob controle”, têm direito a um “desconfinamento” mais mais frouxo, em comparação com as regiões pintadas em vermelho no mapa, cuja situação ainda é crítica e, portanto, mais restrições são aplicadas (é o caso de Paris e arredores). Uma região pode mudar de cor do dia pra noite, o que significa que todos devem estar prontos para, a qualquer momento, apertar os cintos novamente. Tudo isso vai depender de como a população vai se adaptar à nova vida pós-lockdown.

Mesmo para quem está em uma “zona verde” do mapa, ficou evidente que a vida não voltou ao normal, como previu o primeiro-ministro. As escolas foram reabertas, mas com um limite de, no máximo, 15 alunos por classe – a prioridade é dada aos que têm pais que não podem trabalhar de casa. Dos mais de 6 milhões de estudantes escolares do país, apenas 1 milhão pode voltar às aulas nesta semana. Os alunos do Ensino Médio, com idade suficiente para ficar em casa sem os pais, seguem com cursos online. As universidades só reabrirão em setembro, no início de um novo ano letivo.

Os encontros entre amigos e familiares precisam se limitar a um grupo de 10 pessoas. Os deslocamentos entre cidades devem respeitar um limite máximo de um raio de 100 km de distância, para evitar que o vírus circule entre territórios – com risco de multa para quem desrespeitar (precisamos carregar conosco o comprovante de residência o tempo todo).

Atividade econômica

Cerca de 400 mil comércios reabriram em todo o país, mas com uma série de medidas de segurança, como placas de vidro para formar uma barreira entre o caixa e o cliente, máscara e álcool gel disponíveis na entrada do estabelecimento. Mas nem todos os comércios seguem à risca as recomendações – algumas marcas famosas já estão sendo linchadas virtualmente por exibirem uma longa fila na porta do local, sem impor o distanciamento entre clientes. Os parques, praias e mercados de rua poderão abrir mediante autorização da prefeitura municipal, que analisará cada caso isoladamente – é possível que, em uma mesma cidade, alguns parques sejam liberados ao público e outros, não. Em Paris, por exemplo, eles seguem proibidos. Os bares, restaurantes, cinemas e academias continuam fechados. As fronteiras europeias também.

As empresas de organizado de eventos estão quebrando a cabeça para reagendar as festas de casamento marcadas pra esse verão, a partir de junho. O cronograma do verão 2021 já está completo com os casais que já haviam bloqueado uma data antes da epidemia, somados aos que estão desesperados tentando se encaixar também no ano que vem. Os festivais de verão foram todos cancelados. Um casal de amigos que deveria se casar dia 1 de agosto está desesperado porque só tem agenda pra 2022.

Para utilizar o transporte público, a máscara é obrigatória. Há, inclusive, uma campanha massiva por parte das autoridades para estimular o uso das bicicletas. Na avenida onde eu moro, por exemplo, transformaram, ainda na semana passada, uma faixa para automóveis em ciclofaixa.

A estratégia sanitária do governo a partir de agora consiste em testar todas as pessoas que apresentarem sintomas de Covid-19. Estima-se que, com o fim do confinamento, entre 3000 e 5000 novos casos surjam diariamente. Caso o resultado seja positivo, haverá uma investigação para identificar, testar e isolar as pessoas com quem o infectado teve contato. Hotéis serão colocados à disposição para quem tiver dificuldades em ficar isolado na própria casa(como quem mora com pessoas do grupo derisco, por exemplo).

De um modo geral, o francês está encarando a pandemia com uma certa tranquilidade. Por aqui, ainda não conheço ninguém que higieniza as compras do supermercado ao chegar em casa, esse é o tipo de informação que só circula nos meus grupos de conversa do Brasil. Também não conheço pessoas que correram às farmácias para fazer estoque de remédios que não foram comprovados cientificamente como eficazes. A população idosa, extremamente ativa na sociedade, não deixou de sair para comprar a baguete do café da manhã na boulangerie. Hoje, no shopping em frente à minha casa, vi dezenas de pessoas circulando – todas com máscaras, mas aparentemente sem medo. Uma amiga cabeleireira disse que já está com as três primeiras semanas de pós-confinamento completas com clientes agendados.

Mas nem todos estão vibrando com o fim do lockdown. Encontrei, por acaso, meu clínico-geral na rua e ele se mostrou preocupado com a atitude das pessoas: ‘’Muitos estão desesperados para se encontrarem com os familiares e amigos e isso é um perigo, especialmente porque pode haver assintomáticos entre eles. O momento agoraé de calma, não podemos esquecer que existe uma pandemia’’, ele disse. Se a quarentena vai voltar a ser obrigatória ninguém sabe, mas é certo que, enquanto pode, o francês está aproveitando cada segundo da liberté da qual ele tanto se orgulha em ter desde a Revolução Francesa.

Carolina Melo
Jornalista e vive em Rennes, na França, desde 2016