Coronavírus

França testa passaporte sanitário como regra de convivência urbana

É verão na França e as mesas ao ar livre dos bares e cafés estão lotadas de pessoas querendo desfrutar ao máximo do período estival.  Eu sou uma delas. Aproveitei as férias escolares dos meus filhos para oferecer o lanche da tarde fora de casa, em uma padaria do bairro. O garçom se aproximou e me apressei para fazer a escolha no menu, quando ele tirou o celular do bolso e disse: “Bom dia, madame, preciso do seu passaporte sanitário, por favor”. Como já tenho minhas duas doses de vacina contra a COVID-19, tirei o celular da bolsa tranquila, sabendo que eu estava autorizada a ficar no local. Para minha frustração, o telefone estava sem bateria e não pude ter acesso ao meu passaporte, por meio do aplicativo do governo — tampouco tinha comigo a versão impressa do documento. Nem tentei negociar, mas o funcionário se justificou:  “Desculpe, mas não vai ser possível servi-los à mesa.  Quer levar pra casa?”. Saí de lá com três croissants em um saquinho de papel e duas crianças chorando. 

Antes deste episódio, eu já havia estreado o meu passaporte sanitário — comi em restaurantes, fui ao cinema e a uma exposição de arte, levei meus pequenos para um parque com piscina. Todos esses estabelecimentos fazem parte da seleção de locais que exigem o certificado de vacinação, desde que a medida foi anunciada pelo presidente francês, Emmanuel Mácron, no dia 21 de julho. 

No início, o documento era cobrado para realizar viagens de avião para fora do país e participar de eventos com número elevado de pessoas, como partidas de futebol e shows. Também era preciso apresentar o certificado para frequentar museus, cinemas, parques de atrações e grandes centros comerciais. Mas o ponto fraco do francês está na gastronomia e na vida boêmia, ao desfrutar de uma taça de vinho em uma mesa na calçada. E quando a obrigatoriedade do passaporte chegou aos bares, cafés e restaurantes, no dia 9 de agosto, a população começou a perceber que não seria possível viver normalmente sem as duas doses da vacina. 

A mesma exigência foi feita às pessoas que trabalham nos estabelecimentos onde a vacinação é obrigatória ao público que frequenta o local. Ou seja, não é apenas o cliente do restaurante que deve ter as doses em dia, mas todos os profissionais que trabalham ali, do chefe de cozinha ao responsável pela limpeza — a multa pode chegar a 9000 euros se não respeitar as regras. Isso obrigou muitos comércios, principalmente os bares com grande número de mesas, a criar uma espécie de barreira no local e deixar apenas uma porta de entrada, na qual um funcionário se responsabiliza pelo controle do passaporte dos clientes. Tornou-se comum enfrentar filas que antes não existiam. No caso das pessoas que não respeitarem a obrigatoriedade do certificado, a multa pode chegar a 3700 euros e até 6 meses de prisão, dependendo da incidência. 

Aos profissionais de saúde, foi exigido que a imunização estivesse em dia para que pudessem exercer o ofício. No campo da educação, o debate ainda está em aberto. Por enquanto, a vacina não será obrigatória para alunos e funcionários. Entretanto, o Ministerio da Saúde pretende  investir pesado no incentivo: instalarão tendas nas principais escolas (com jovens com idade superior a 12 anos, o mínimo permitido para receber o imunizante) com uma equipe pronta para aplicar a dose nos interessados. No início do mês, eu recebi um e-mail da creche do meu filho informando que os pais das crianças deveriam enviar uma cópia do passaporte sanitário para ter acesso ao local —  caso contrário, os pequenos deveriam ser deixados do lado externo, em frente à porta, para que um responsável do estabelecimento fosse recupera-lo. Hoje fiquei sabendo que o governo voltou atrás e vai analisar novamente a situação das creches, a opção mais comum na França para cuidar de crianças com idade inferior a três anos. 

Quando todas as exigências foram anunciadas, a França já estava vacinando, há semanas, os jovens com mais de 12 anos. Teoricamente, nenhum adulto   sofreria com as restrições por falta de dose ou horário no agendamento. Ainda assim, muitos não estavam com o cronograma em dia. A farmácia do meu bairro passou a ter filas imensas com pessoas querendo fazer o teste PCR — solução alternativa para quem não estiver vacinado completamente poder frequentar os locais que exigem o passaporte (na ausência das duas doses, deve-se apresentar um exame negativo realizado em menos de 48 horas). 

Em alguns casos, a pessoa simplesmente demorou para agendar a imunização — mas há também quem resista a aceitá-la. Existe uma minoria que vai às ruas contra o passaporte sanitário, as manifestações já duram seis semanas, mas o quórum tem diminuído. Na semana passada, estima-se que 215 000 pessoas manifestaram em todo o país e, nesta semana, houve uma redução de 40 000 participantes. Enquanto isso, a campanha segue avançando e mais de 70% da população com mais de 12 anos já possui as duas doses aplicadas. À minoria que segue sem vacina, pedindo por “liberté” — lema que compõe o slogan da Revolução Francesa — Mácron respondeu: “Nós somos o país do Iluminismo e de Pasteur e quando a ciência nos oferece uma forma de nos proteger, devemos confiar na razão e no progresso (…) Em todos os lugares, teremos a mesma abordagem: reconhecer a boa cidadania e aplicar as restrições aos não-vacinados, ao invés de fazê-lo a todos os outros”. 

Carolina Melo
Jornalista e vive em Rennes, na França, desde 2016