Sustentabilidade

Municípios coletam resíduos contaminados pelo coronavírus junto com resíduo comum

Máscara utilizada nos serviços de saúde

Situação se agrava com inadimplência das prefeituras na contratação dos serviços de tratamento e com o aumento do volume de lixo hospitalar, que na China e na Itália subiu mais de 300% no pico da epidemia

Um dos mais sérios riscos de contaminação pelo Covid 19 advém justamente dos locais onde a doença é mais combatida: hospitais e postos de saúde. Por todo o país surgem casos de unidades de serviços de saúde que descartam resíduos infectados pelo coronavírus sem o tratamento necessário, misturando resíduos sólidos aos de saúde como forma de reduzir o custo de suas operações. Esse tipo de descarte malfeito multiplica as chances de propagação do vírus entre profissionais da saúde e da limpeza e também entre moradores de comunidades pobres localizadas perto de pontos de descarte. Pesquisadores do mundo todo estudam a probabilidade de o vírus se propagar pelo ambiente. Neste caso, o lixo contaminado se torna um vetor de propagação ainda mais grave.

“Quase metade dos municípios do país ainda destina seus resíduos comuns no solo, de forma inadequada. Se isso ocorre com os resíduos sólidos urbanos, imagina o que ocorre com os perigosos, caso dos resíduos de saúde”, afirma a pesquisadora Wanda Günther, professora titular do Departamento de Saúde Ambiental da Faculdade de Saúde Pública da USP. Segundo ela, há cidades que, por questões econômicas ou de acesso a sistemas específicos para tratamento de resíduos dos serviços de saúde infectantes, continuam coletando tudo junto. Nestes casos, como o destino é o mesmo, tudo será disposto no solo, sem tratamento. Isso tende a ocorrer cada vez mais quando a pandemia chegar aos locais mais afastados dos grandes centros urbanos.

“Se nesta epidemia se está gerando resíduos líquidos que estão sendo tratados como resíduos sólidos ou então sendo descartados de forma errada, pela pia, é algo que merece atenção”, diz Wanda. De acordo com a pesquisadora, as secreções aspiradas dos pacientes infectados seja talvez um dos mais perigosos resíduos gerados em decorrência da COVID-19. “Eles estão sendo armazenados em bombonas de plástico que devem seguir para o mesmo fluxo de tratamento dos resíduos infectantes. Eles não podem ser tratados como resíduos comuns. O risco, neste caso, ocorre tanto durante a manipulação quanto no tratamento. O bom senso do gestor é fundamental, sempre pensando na prevenção e considerando os princípios da precaução”, afirma.

Resíduos hospitalares precisam de tratamento antes do descarte. Crédito: Ibrahim Boran/Unsplash

Fiscalização

Além da disseminação do coronavírus pelo território, outros dois fatores contribuem para o agravamento do problema. O primeiro é a situação calamitosa em que os cofres municipais se encontram, uma vez que sua principal fonte de arrecadação — tributos e repasses de tributos– cessou com a paralisação da atividade econômica. O segundo é o volume de lixo produzido no enfrentamento da pandemia, que deve atingir proporções recordes ainda no mês de maio. O aumento pode chegar a 20 vezes em algumas regiões do Brasil.

Conforme a reportagem do blog Cidades 21 apurou, a mistura dos resíduos infectados com o lixo comum é um dos problemas graves que podem ocorrer ainda mais a partir do dia 10 de maio, data estimada para o volume de resíduos de saúde começar a crescer bastante no Brasil. Um dos motivos para isso ser uma prática é o maior preço que se paga a terceiros para o tratamento correto dos resíduos contaminados. 

As irregularidades atreladas à disposição de lixo hospitalar que será cada vez maior, tantos nos hospitais existentes quanto nos chamados hospitais de campanha, que estão em funcionamento em vários Estados brasileiros, devem ser fiscalizadas pelos órgãos ambientais estaduais. No caso específico de São Paulo, a Cetesb, agência ambiental paulista, informou que acompanha o licenciamento ambiental tanto dos hospitais de campanha quanto da ampliação dos leitos em unidades de saúde que já existem. Segundo ela, os técnicos do órgão estão orientando os empreendimentos a efetuarem a regularização de acordo com as normas técnicas. 

Por causa do Decreto do Estado de Calamidade Pública em São Paulo, o licenciamento ambiental dos hospitais de campanha foi acelerado. De acordo ainda com o órgão ambiental, as unidades de tratamento e disposição final de resíduos de saúde que já funcionam no Estado, de forma legal, ganharam uma aumento automático na capacidade de receber lixo de 25% que consta do licenciamento ambiental já emitido anteriormente.

Em relação à produção de lixo, assim como ocorreu em vários outros países, no Brasil não deverá ser diferente. A Abrelpe (Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais) estima que o Brasil pode começar a registrar um volume até 20 vezes maior do que o produzido no País em dias normais nas próximas semanas. Tudo por causa da lotação das UTIs em hospitais públicos e privados, além dos casos de baixa e média complexidade que ainda vão lotar os hospitais de campanha. 

Entre os diversos tipos de tratamento, a incineração é a mais comum. Crédito: Rawpixel

Na Itália, nas semanas em que a pandemia atingiu o pico, o aumento chegou aos 20%, segundo uma das principais entidades do setor de resíduos sólidos do país, a Confindustria Cisambiente. Taxa que subiu para 300% na região de Bergamo, uma das mais afetadas pela Covid-19. Na cidade chinesa de Wuhan, onde o coronavírus começou seu sucesso evolutivo e se espalhou pelo resto do mundo, o aumento na produção de lixo hospitalar bateu os 900%. Chegaram a ser produzidas 240 toneladas por dia, o peso equivalente ao de uma baleia, em relação às 40 toneladas diárias que eram recolhidas antes da pandemia.

“Por enquanto, cidades como São Paulo ainda estão com sua capacidade ociosa. Pelo levantamento que fizemos no final de março, o aumento do volume estava em 5%. Com o aumento da produção, que pode ocorrer nas próximas semanas, existe uma tendência maior de o descarte irregular ocorrer em algumas regiões do Brasil, o que é preocupante tanto em termos de saúde pública, quanto na questão ambiental, afirma Carlos Silva Filho, diretor presidente da Abrelpe. 

“O grande tema em discussão hoje é como os municípios médios e pequenos vão conseguir arrecadar, porque a arrecadação está derretendo. Ou vem ajuda do governo federal ou eles realmente vão parar de pagar fornecedores”, afirma Gilberto Perre, secretário-executivo da Frente Nacional de Prefeitos (FNP).

Ele acrescenta que a falta de recursos atingirá tanto as despesas ordinárias, que fazem parte do dia a dia das cidades, quanto as extraordinárias, criadas pela pandemia. 

“Os hospitais de campanha, por exemplo, nos demandam mais pontos de coleta de lixo e maior volume de lixo sendo coletado e tratado. O mesmo vale para o reforço do serviço funerário, que passa a ser uma necessidade”, diz. Para Perre, mesmo os recursos extras advindos do SUS têm chegado em uma velocidade muito inferior à que a pandemia está demandando.

Um possível caminho é a aprovação do Projeto de Lei Complementar (PLP) 149, que estabelece ajuda financeira a estados e municípios para o enfrentamento do coronavírus e se encontra aguardando tramitação no Senado, sob relatoria do presidente da Casa Davi Alcolumbre (Democratas-AP).

Descarte sem tratamento

Os números gerais levantados pela entidade, que é responsável pela publicação anual “Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil”, mostram que a destinação incorreta dos resíduos dos serviços de saúde, que engloba também, além dos hospitais, tudo o que é produzido por clínicas odontológicas, laboratórios, centros veterinários entre outros, é um problema crônico no Brasil. Na região Sudeste, por exemplo, a mais rica do Brasil, 40,8% dos resíduos geradas são lançados em aterros, valas sépticas e lixões sem nenhum tratamento prévio, ao contrário do que manda a lei, segundo números de 2019 referentes ao ano de 2018. Em termos de volume, foram coletados em todo o Brasil quase 253 mil toneladas de lixo hospitalar. 

De acordo com a legislação, os resíduos hospitalares devem ser coletados nos hospitais, esterilizados por empresas credenciadas dentro das várias normas estabelecidas pelos órgãos de saúde e de meio ambiente para então, só depois, serem despejados nos aterros. Com a pandemia causada pelo coronavírus, todos os elos da cadeia, desde os hospitais públicos ou privados, passando pelas empresas que fazem a coleta, tratamento e destinação dos resíduos precisam fazer a sua parte para a saúde da sociedade não ser ainda mais afetada. O tratamento pode ser feito por incineração, esterilização em autoclaves ou por micro-ondas.

Lixões em alta 

Segundo Wanda Günther, professora da USP, o aumento do volume de resíduos de serviços de saúde é uma questão que precisa ser considerada. “O problema é que nem sempre todo resíduo infectante, mesmo os que tiverem sido segregados na fonte e acondicionados de forma adequada, segue para tratamento”, diz a especialista. 

Em muitos municípios brasileiros, esses resíduos de saúde, segundo Wanda, ainda seguem para disposição no solo em aterros sanitários ou valas sépticas, o que é menos mal, ou ainda são dispostos a céu aberto. “Muitos desses lixões têm o acesso de catadores, o que pode agravar a situação. Ainda assim, alguns estados brasileiros permitem a disposição de resíduos do Grupo A – caso dos resíduos dos serviços de saúde –, diretamente no solo, como é o caso de Minas Gerais, dispensando o tratamento. Em São Paulo, a disposição no solo sem tratamento não é permitida”, afirma a pesquisadora.

Wanda também demonstra outra preocupação caso o volume do lixo hospitalar cresça de forma abrupta. Além dos locais onde os resíduos não passam por nenhum tipo de tratamento, existe um outro percurso do lixo que pode gerar muitos riscos para a sociedade. “Também é preocupante quando os resíduos seguem para locais onde o tratamento não é apropriado, caso incineradores improvisados que não efetuam a queima completa dos resíduos”. Nestes locais, segundo a professora da USP, todo o material infectado é processado de forma manual, por funcionários que muitas vezes nem material de proteção têm. 

Versões diferentes

O presidente da Associação Brasileira de Empresas de Tratamento de Resíduos e Efluentes (Abetre), Luiz Gonzaga, também concorda que a mistura dos vários tipos de resíduos é algo grave que não pode ocorrer. “O que não se pode permitir é que haja mistura de resíduos. O que é resíduo de saúde assim deve ser descartado e, por exemplo, a parte de resíduos do que chamamos de hotel, dentro de um hospital, é domiciliar e não deve nem pode ser misturado com a fração de saúde”, afirma o dirigente. 

De acordo com Gonzaga, no caso específico de São Paulo e das outras grandes capitais do País, não deve haver nenhum tipo de gargalo com uma eventual explosão de produção de resíduos por causa da pandemia. “Em São Paulo, o sistema de coleta, tratamento e destino é bastante consistente. São vários veículos destinados a tal finalidade e não há nenhuma possibilidade de sobrecarga. Quanto ao tratamento, as duas usinas disponíveis na cidade são extremamente grandes e suficientes para receber e tratar até 100% da carga normal. O destino também não apresenta problemas. As grandes capitais, geralmente, também estão habilitadas a tratar os resíduos do sistema de saúde sem maiores preocupações quanto às quantidades”, afirmou.

A engenheira sanitária Kátia Campos, coordenadora da câmara técnica de resíduos sólidos da Abes (Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental), discorda totalmente das previsões feitas pela Abrelpe e por outros especialistas do setor de que haverá um aumento expressivo na produção de resíduos hospitalares. 

“Nos Estados Unidos, por exemplo, isso não está ocorrendo. Este colapso aqui está muito longe de ocorrer”, afirma a engenheira, que já dirigiu o Serviço de Limpeza Urbana do Distrito Federal. “No Brasil, grande parte das cirurgias seletivas (plástica, amputação entre outras) foram temporariamente suspensas e clínicas pequenas, tanto veterinárias, médicas e odontológicas estão fechadas. As pesquisas universitárias com uso de animais, em grande parte, também estão interrompidas. Onde os serviços já existiam estão todos funcionando normalmente”, afirma Kátia.

Os números divulgados pela Prefeitura de São Paulo na primeira quinzena de abril mostra uma queda na coleta de resíduos de serviços de saúde. Enquanto em 2020 foram recolhidos 1,4 mil toneladas no mesmo período do ano passado foram 1,8 mil toneladas.

Segundo a secretaria municipal de Saúde, a diferença pode estar relacionada ao fechamento dos pequenos geradores de saúde (estúdios de tatuagem, clínicas de estética e odontológica) durante a pandemia, esses estabelecimentos não estão produzindo resíduos.

Além disso, a coleta nos grandes geradores de saúde (hospitais e clínicas médicas), ainda segundo o órgão, apresentou uma baixa de 36% devido a quase suspensão das atividades não emergenciais, como cirurgias eletivas e consultas de rotina. As coletas de resíduos infectantes em São Paulo é feita, dependendo da região da cidade, pela Loga (centro e zonas oeste e norte, principalmente) ou pela Ecourbis (zonas sul e leste).

Segundo a pesquisadora da USP, neste momento da pandemia, o ideal é que todos os resíduos infectantes fossem incinerados, para reduzir também o risco de gerenciamento e para destruir o agente etiológico.

“Mas isso não é possível porque não há equipamentos disponíveis e porque os contratos de tratamento encaminham para outras tecnologias que não a incineração,como autoclave, microondas, desativação eletrotérmica, entre outras. É para estes momentos também que países mais avançados possuem sistemas de destruição térmica de resíduos”, afirma Wanda.

Problemas financeiros

Se por um lado o coronavírus deve provocar aumento no volume de lixo, por outro causa a redução de 90% das cirurgias eletivas que sustentam hospitais de médio e pequeno porte. Segundo reportagem da Folha de S.Paulo, a FBH (Federação Brasileira dos Hospitais), entidade que representa 4.000 hospitais no país, afirma que a maioria deles não têm fôlego para fechar o mês de abril, já que 70% dos representados se dedicam apenas a atendimento eletivos. 

Para evitar mais dispensas de funcionários e outras consequências mais severas, o setor busca financiamento no BNDES (Banco Nacional do Desenvolvimento) e apoio do Ministério da Economia, além de negociar com planos de saúde o repasse, por um período de três a quatro meses, de parte da receita estimada que teriam se estivessem trabalhando dentro da normalidade.

Eduardo Geraque
Jornalista e biólogo, mestre em oceanografia e doutor em jornalismo ambiental, tem 25 anos de carreira sendo 12 na Folha de S.Paulo entre 2006 e 2018. Com o produto multimídia “Líquido e Incerto” ganhou, ao lado de colegas da Folha, o Prêmio ExxonMobil da categoria informação científica, tecnológica e ambiental de 2015.