Coronavírus

Na pandemia, crianças tentam assimilar a perda da rua e do trajeto até a escola

Reprodução: Haley Phelps/Unsplash

Em uma sociedade onde já eram “pré-confinadas”, caminhar ou brincar em espaços públicos era e é uma conquista

Mais de 90% da população estudantil mundial foi afetada pelo fechamento de escolas devido à Covid-19 em 2020, informa a UNICEF, Fundo das Nações Unidas para a Infância. A rotina das crianças e adolescentes está fortemente marcada não só pelas horas que passam nesses centros educativos, mas também pela maneira como se deslocam até eles as possibilidades que o território urbano oferece nesse percurso.

Em uma sociedade onde as crianças já eram “pré-confinadas”, como diz a especialista espanhola em mobilidade urbana infantil Marta Román, caminhar pelas ruas ou brincar a caminho da escola era e é uma conquista. Embora nossos avós e pais tivessem o hábito de caminhar até a escola como parte do seu cotidiano, nos últimos 30 anos isso foi se tornando cada vez mais raro, ao ponto de ter de ser estruturado em muitos países como política pública, iniciativa da sociedade civil ou reivindicação pela mobilidade ativa. O transporte que escolhemos diariamente condiciona o uso dos espaços urbanos e tem impacto direto na nossa saúde, especialmente no desenvolvimento infantil. Impacta nas condições ambientais, na qualidade do ar, na intensidade do trânsito e nos riscos de atropelamentos. Também exerce efeitos sobre a saúde, nível de atividade física, bem-estar diário, convívio com amigos e vizinhos e sentimento de pertencimento.

Mas a crise sanitária mundial freou tudo isso. As crianças, que a partir desse trajeto podiam expandir sua noção de casa, sentir que a cidade também lhes pertencia, tiveram que virar o jogo. A casa confinada tornou-se cidade, o único lugar para se movimentar, brincar ou tomar banho de sol, sentir o ar fresco e saudar os vizinhos pela janela. Mas será que essa casa-cidade, essa cidade-casa, supre o que lhes é necessário?

Bairros sem parques, sem calçada, sem espaços públicos são moradias sem sol, sem ventilação, sem cômodos suficientes. Citando o pedagogo italiano Francesco Tonucci, não esqueçamos que devemos cuidar do espaço público porque, para muitos, é o único.

Um estudo realizado pela Universidade de Harvard (Chetty & Hendre, 2015) com 5 milhões de famílias dos Estados Unidos, mostrou que, para cada ano que a criança mora em um lugar melhor, há uma correspondente melhoria em seu desenvolvimento, não só na infância, como também na fase adulta, com mais aprendizado, saúde e equilíbrio emocional.

Atualmente, na América Latina e no Brasil, estão se expandindo e consolidando projetos que criam condições para um melhor desenvolvimento infantil em ambientes urbanos. Neles, o papel da mobilidade urbana é fundamental. Os caminhos e as caminhadas costuram espaços urbanos, identificam lugares potenciais para revitalizações, oportunidades lúdicas ou espaços de encontros. Programas municipais ou realizados pela sociedade civil em São Paulo, Recife, Boa Vista, Fortaleza, Jundiaí e outras cidades que apostam nestas mudanças são uma luz de esperança e uma necessidade para os tempos e as cidades que desejamos, agora mais do que nunca. É preciso olharmos para isso agora para que, caminhar, pular e brincar “sentindo o vento no cabelo” ou no colo de quem cuida, seja parte de nossa recuperação desses meses difíceis.

Texto originalmente publicado em Para Onde Vamos

Irene Quintáns
É arquiteta e urbanista com mestrado em Estudos Territoriais e Urbanos (Barcelona 2008) e certificada pelo programa de Liderança Executiva em Desenvolvimento na Primeira Infância (Harvard 2017). Consultora técnica para governos locais, atuou como planejadora urbana nas Câmaras Municipais de Barcelona e São Paulo (Brasil) entre 2008 e 2013. Desde então, é consultora de instituições como Banco Mundial, Fundação Ford, Bloomberg Philanthropies, WRI, Fundação Bernard van Leer, UNESCO e presta apoio a governos locais na Espanha e América latina.