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Planejando um centro existente

Reprodução: Planta.Inc

Planejar uma cidade ideal esboçando linhas sobre uma folha em branco é uma coisa. Outra, totalmente diferente, é tentar articular espaços que existem na vida real, repletos de história e complexidade. Enquanto o primeiro exige a capacidade técnica de se traçar estratégias e limites funcionais para dar contorno à imaginação, o segundo pressupõe exatamente o contrário: muita utopia e imaginação para tentar superar o inevitável pé no chão e a profunda investigação dos desafios a serem enfrentados, encontrando talvez fissuras onde se construir aos poucos as cidades que sonhamos.

O poder público em São Paulo acaba de dar um passo para exercer o segundo tipo de planejamento. Proprietários de prédios concluídos antes de 1992 e que aderirem a retrofits para fins residenciais do Requalifica Centro serão incentivados com isenção de IPTU por três anos, ITBI, e após a obra o abatimento de ISS. Há ainda promessas de tornar o processo de aprovação mais eficiente, reduzindo a média de seis meses de trâmite para noventa dias. 

A medida se faz especialmente importante frente aos números da região central: levantamento da própria prefeitura identificou 3 mil imóveis localizados no centro com potencial de se enquadrarem no programa. Outros 1.476 imóveis da região já foram notificados a arcarem com IPTU progressivo, sanção prevista para terrenos ou edifícios que não cumprem sua função social, ou seja, seguem vazios ou subutilizados. 

O desperdício é especialmente gritante quando dados oficiais apontam que faltam ao menos 474 mil domicílios para atender à demanda habitacional na cidade e o centro segue esvaziado de moradores e repleto de infraestrutura, de escolas, hospitais, equipamentos culturais passando pelas redes de transporte público, comércio e serviços.

Dessa forma, o Requalifica Centro representa um grande avanço na relação entre poder público e iniciativa privada ao indicar o comprometimento da prefeitura em dividir com o investidor os riscos das imprevisibilidades inerentes ao retrofit. Como consequência, o retorno financeiro previsto para empreendimentos desse tipo deve aumentar. Análises preliminares apontam para um incremento de aproximadamente 3% ao ano na taxa de retorno, hoje de 17% ao ano. Com isso, os retrofits podem se tornar não apenas mais atraentes como mais competitivos do que as edificações construídas do zero, as chamadas greenfields, cujo retorno é de cerca de 18% ao ano. A mudança tem o potencial de impulsionar uma multiplicação de retrofits e redirecionar a lógica de desenvolvimento urbano, do espraiamento ilimitado ao adensamento racional que otimiza recursos e espaços existentes, modelo certamente bem mais sustentável e condizente com a realidade atual.


Construir processos de aprovação claros para agilizar esse tipo de projeto junto aos órgãos competentes é outro ponto fundamental para reduzir a insegurança jurídica e colocar um fim no prolongamento indefinido de prazos que adicionam custos de carregamento dos ativos até se tornarem impraticáveis.

Requalificar o centro e ampliar a oferta de moradia são faces da mesma moeda e dependem do engajamento da iniciativa privada para que se coloque em prática o  que o poder público propõe. O sucesso do plano passa pelo envolvimento de investidores qualificados que possam combinar boas intenções à viabilidade financeira, sobretudo quando o atual sistema tradicional dos grandes bancos de financiamento habitacional não oferece opções para os retrofits. 

Como dizia Paulo Mendes da Rocha: “Quem tem medo do centro tem medo da liberdade”. É chegada a hora de adensarmos e superarmos o trauma das diferenças geradas pelas distâncias. Podemos encontrar nas lições do passado as melhores soluções para o futuro.

Guil Blanche
Guil Blanche é fundador da Planta.Inc e empreendedor de impacto responsável por projetos de requalificação urbana. Atuou em projetos como o Movimento 90º, com o qual viabilizou e instalou mais de 30 mil m2 de jardins verticais na escala pública em São Paulo e o retrofit do Edifício FSMJ, na rua Amaral Gurgel 344.